“Para nós, era um episódio da revolução”
Em entrevista inédita, o ex-líder estudantil reconstrói os acontecimentos que ajudaram a colocar o Brasil no centro dos acontecimentos de 68.
4 jun 2018, 12:48 Tempo de leitura: 79 minutos, 51 segundosChegamos ao apartamento de Vladimir Palmeira, no centro do Rio de Janeiro, na hora marcada. Eram 14 horas de uma tarde quente de abril deste ano. Estávamos Inez Rocha, Honório Oliveira, Israel Dutra e eu. Perto da Lapa, o edifício é uma construção antiga, enorme prédio no qual a parte interna tem um amplo corredor em círculo onde os apartamentos localizam-se em sequência e, no centro, um amplo vão em que apenas um muro baixo nos protege. É o próprio Vladimir que nos atende. A alegria do reencontro é grande. Tínhamos nos visto algumas vezes nos últimos anos, mas sempre foram encontros breves, na rua, ou conversas por telefone. Conversa com tempo e pessoalmente fazia muito tempo. Aconteceram entre os anos de 1998 e 2002, quando tive a sorte de trabalhar durante longos períodos com Vladimir, Antônio Neiva, os dirigentes da corrente petista Refazendo.
Na recepção, me chama de gaúcho e trotskista – sempre intercalou um tratamento ou outro – quando não me chama simplesmente de Robaina. A simplicidade proletária do prédio contrasta com a vista ampla e maravilhosa que o apartamento do 14º andar proporciona: a baía da Guanabara.
Vladimir foi deputado federal por mais de um mandato, adquiriu fama e não enriqueceu. Chegou a ganhar na loteria e doou o dinheiro para o partido. Quanta diferença da política tradicional e da burocracia! A conversa foi ótima. Saímos felizes. Vladimir já não tem um partido. Quando trabalhamos juntos ficou evidente que o PT era um partido que tinha falido. Repetimos muitas vezes que a intervenção contra a candidatura a governador de Vladimir em 1998 para impor o apoio do PT a Garotinho antecipou a crise e o colapso do PT. Vladimir também percebeu isso. A crise do PT, especialmente no Rio, mostrava que havia um espaço para ser ocupado por uma nova esquerda. Quando decidimos fundar o PSOL, porém, Vladimir não acompanhou. O crescimento do PSOL conformou a existência desta hipótese. Ainda assim, Vladimir não se somou. Apesar de não ser do PSOL, votou em Tarcisio nas eleições de governador em 2014. E, embora não tenha partido, suas posições mostram que ele tem uma relação de defesa do partido de Marx no sentido amplo. Vladimir, em termos estratégicos, mantém um discurso nos marcos do marxismo.
Nesse sentido, é muito rico seu relato das mobilizações de 68. É visível seu entusiasmo com a defesa do método da mobilização de massas. Vi isso em seus discursos de 98, na sua reivindicação do levante de junho de 2013 e novamente em seu relato de 68 no Brasil e no mundo. Em todos os momentos da entrevista, fica claro seu entusiasmo com o movimento de massas. É um pensamento com o qual compartilhamos, base de nossa camaradagem. Quando neste livro homenageamos o ano de 68, é muito importante lembrar como Trotsky definia a revolução:
“A revolução destrói e derruba a maquinaria do antigo estado. As massas entram em cena decidindo, atuando, legislando de uma maneira sem precedentes; julgam e dão ordens. A essência da revolução é que a própria massa se torna seu próprio órgão executivo” (p. 392 de Stalin). Mas este impulso nem sempre consegue ir até o final. No Brasil de 68, foram apenas alguns indícios. Em 2013, novamente no Brasil os indícios existiram. Na França, eles foram muito mais poderosos. Mas, mesmo na França insurreta, a revolução não se consumou. A eleição e as concessões salariais foram as armas burguesas para conter o processo. Neste ponto, também os ensinamentos de Trotsky nos servem. Ele explicou que os elementos mais ativos das classes participam da luta revolucionária. “Na eleição, a participação se amplia; é estendido para incluir também uma parte considerável da (massa) semi-passiva e semi-indiferente” (p.393 de Stalin).
Por isso, o resultado das eleições é, em geral, muito distorcido, se forem comparados à energia das ruas e manifestações. Por isso, trotskistas, maoístas e anarquistas denunciaram a eleição de De Gaulle, contra o PCF que apoiou o regime burguês. A entrevista de Vladimir vai ajudar a armar aqueles que querem desenvolver a política de emancipação e de ações de massas. Acompanhe a seguir.
I) A massa nas ruas
ID: Caro Vladimir, um prazer conversar contigo, olhar com os olhos de hoje e contar para as novas gerações o que aconteceu em 68, além de descrever teu papel político e social. Neste cinquentenário, para início de conversa, eu queria uma apresentação tua sobre o significado desse encontro com a História que tiveste no auge da tua juventude.
VP: (Risos) A gente nem pensava muito nisso não. Para nós era um episódio da revolução. Apesar de importante, nós sabíamos que o movimento estudantil era um movimento secundário. Quem tinha força era o movimento sindical e camponês. Então, sentíamos um prazer em ter gente na rua, um movimento, mas tínhamos absoluta certeza das nossas limitações e não pretendíamos liderar ninguém no Rio. A Ação Popular1, nossa corrente, era a liderança do movimento, ela queria liderar, mesmo que transitoriamente, o movimento operário-camponês. E nós dizíamos “Não, não”. Em São Paulo, a UNE e o pessoal da AP forçava a barra para falar em assembleia operária. Aqui no Rio, nós sempre fomos convidados pra essas coisas de sindicato e nunca falamos. E esses caras davam apoio simbólico às nossas manifestações, mas respeitando a dinâmica do movimento, que era o mais importante.
O movimento de massas é uma coisa muito boa. É uma força, é um negócio. A massa é uma força notável. Sabia que naqueles conflitos que antecederam a Passeata dos Cem Mil2 foram cinquenta e cinco soldados presos ou pro hospital? Cinquenta com problemas nervosos! Não é a pancada, é o medo. A massa é um negócio impressionante. Aquilo dá uma energia. Foi um prazer, foi muito bom. Mas também sabíamos que vinha o revertério, que vinha golpe. Enquanto não houvesse movimento operário e campesinato organizado, não se iria ia muito mais adiante. Não sabíamos exatamente o que aconteceria, mas sabíamos que vinha um golpe. Eu e Franklin Martins3 conversamos bastante com o pai dele, o senador Mario Martins (MDB), homem honesto e decente, e com seu suplente Marcelo Alencar (MDB). Queriam ajeitar a gente para as próximas eleições e tal, para capitalizar o movimento. Nós dizíamos “não vai ter eleição”. E de fato nós estávamos certos. Logo, nossa perspectiva não era imediata.
Nós não refletíamos sobre as mudanças que 68 iria significar. Isso é coisa de velho, depois se faz o balanço, conforme se acompanham as mudanças ao longo da história. Mas ali não se tratava disso. Nós éramos excessivamente leninistas, queríamos fazer a revolução operária e camponesa. Com formas novas e com a massa. Este era o ponto de vista, do meu grupo, a Dissidência Comunista da Guanabara (DI-GB)4.
Agora, no movimento estudantil tinha de tudo, até direita. Aqui no Rio de Janeiro, a direita participava das entidades estudantis. Nós éramos uma entidade sindical. O movimento estudantil tem alta rotatividade. Na Europa, havia o bloco operário. O avô é operário, o pai é operário, o neto é operário. A memória é mantida pelos sindicatos, pelas instituições, e eventualmente pelos partidos operários. Essa é uma memória permanente. De quem, do estudante? Não! O estudante não é parte da Universidade a longo prazo. Então, isso facilita uma ruptura na memória do movimento. E foi o que aconteceu. Quando se reconstruiu o movimento estudantil em 75-765 eles nem sabiam direito o que era 68. Construíram um movimento estudantil somente político contra a ditadura. Mas nós tínhamos no Rio de Janeiro um movimento de natureza sindical contra a ditadura. Embora a maior parte das lideranças eram pela revolução de uma forma ou de outra, era um movimento de natureza sindical que abarcava todas as frações de pensamentos estudantis contra a ditadura, até mesmo uma direita contra a ditadura. E a ditadura foi se isolando cada vez mais. A amplitude do movimento se deve muito a isso.
Evidentemente, havia muitas diferenças. Nós éramos o pessoal mais à esquerda. O pessoal ligado ao Partidão era mais moderado. Mas nada disso afetou o caminho geral do movimento. Então era um movimento de contestação à ditadura com reivindicações concretas importantes. Por exemplo, a luta pelo ensino público. No Brasil, depois de 1964, a ditadura fez a contrarreforma em todos os aspectos da vida social. Ela fez uma reforma agrária com o Estatuto da Terra: a desapropriação por via de títulos da dívida pública pagáveis. Antes de 64, a desapropriação era à vista. Assim ela perdeu parte do apoio latifundiário. Ela também fez a reforma no sistema financeiro, quase inaugurando um novo sistema financeiro. Fez a reforma do sistema de habitação, com a criação do Banco Nacional de Habitação, presidida pela Sandra Cavalcanti. Com estas mudanças, mudou-se o sistema fiscal. No entanto, quando esta contrarreforma chegou nas Universidades, encontrou resistência. E foi o único setor em que não triunfou totalmente por causa da luta de 68. A ditadura teve que fazer uma curva aí, multiplicando o ensino superior privado, eventualmente de baixa qualidade. Entre a minha prisão, o exílio e a volta do Brasil (1968-1979), o número de estudantes universitários decuplicou.
RR: Quatro anos após o golpe, como era o clima nas ruas e qual era a sensação do ativismo em relação ao regime militar? E como a população via isso?
VP: Era muita crítica e pouca aporrinhação. Os movimentos populares foram destruídos e grande parte dos partidos de esquerda foram presos. O movimento popular sofreu repressão maior, com a morte de camponeses e marinheiros. O movimento camponês e o movimento operário pararam.. Já com o movimento estudantil, era tudo mais tolerável, porque tinha uma base que apoiou a ditadura militar. Uma parte da classe média realmente apoiou o golpe. Inicialmente, a repressão ao movimento estudantil foi branda, o que lhe permitiu reorganizar rapidamente.
Logo, a ditadura começou a perder seus aliados imediatos. Quer dizer, tirando o capital multinacional, a ditadura perdeu uma parte da burguesia, uma parte da classe média e uma parte do latifúndio pela política de contrarreformas. A ditadura não era a negação do progresso, era a afirmação do progresso capitalista. Dirigido e de direita. Reacionário, mas progresso. É equívoco imaginar que a ditadura veio pra defender o que era antigo. A ditadura foi um grande elemento modernizador no Brasil.
No início, como o Elio Gaspari chama6, havia uma “ditadura envergonhada”. A ditadura primeiro disse que iria fazer eleições. Depois adiou as eleições. Depois cancelou e matou os partidos todos. Criou dois partidos. No final, outorgou uma Constituição. Considerado mais “light”, Castelo Branco entregou para Costa e Silva uma cadeia, que era a Constituição. Constituição de merda e tal, mas uma Constituição. Havia Superior Tribunal Federal, tinha habeas corpus, os direitos fundamentais eram garantidos. E ficou esse impasse. Por isso, o Gaspari chamou de “ditadura envergonhada”. Ela era uma ditadura, quer dizer, se eles quisessem, em tese, fazer alguma coisa, poderiam. Mas de tal forma que não podiam fazer qualquer coisa de fato, porque estavam aprisionados pelas leis que eles próprios criaram. Nesse clima, não tinha censura à imprensa. O movimento estudantil cresceu muito porque a imprensa dava grande divulgação. Mesmo a imprensa esculhambando o movimento estudantil, isso só realçava a falácia do regime. O cara que assistia simpatizava com o estudante. E o pessoal tende a ter um olhar mais divertido com relação à juventude. E nós crescemos com isso. A gente falava muito mal do governo militar, falava mal de tudo. Mas a ditadura não era exatamente ainda uma tirania, comparando como ficou depois do AI-57.
ID: No movimento estudantil, quais os antecedentes de 68? Enquanto luta estudantil, nesses anos.
VP: A minha faculdade foi a primeira que se reergueu. Havia uma grande disputa pra saber qual faculdade era melhor: a nossa (a Faculdade Nacional de Direito) e a Faculdade de Filosofia. A nossa tinha uma grande tradição, com o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO). Mas a filosofia tinha o maior movimento, pois tinha mais gente. A Filosofia congregava todo o pessoal das Humanas, Matemática, Física, menos o Direito.
Apesar de pequenos, tínhamos uma grande tradição de luta e de confronto. Mas a Filosofia foi a mais reprimida. Assim, nós crescemos rapidamente, elegemos acho que o primeiro centro acadêmico do Brasil, acho que em 64 ainda, pelas liberdades democráticas. Até elegemos um cara que era mais populista, um tribuno, um grande orador. Queríamos reestabelecer os poderes do centro acadêmico, entre os quais a gestão do bandejão e a gráfica, que era nossa e a ditadura roubou. Roubaram a Atlética, onde tinha jogos. A polícia começou a entrar. Você fazia plenária a polícia entrava. Dispersava o professor e acabava as aulas. Mas a gente tinha certa sabedoria, né, não criava confronto. Saía indignado, mas saía. E aí em 65 fizemos uma greve por causa da situação do bandejão.
A nossa escola fazia muita coisa, mas as outras escolas não faziam tanta coisa naquele momento. Até que com a distensão, a Filosofia conseguiu fazer a primeira manifestação. E os funcionários públicos revolveram fazer a primeira passeata em defesa dos seus interesses. Tinha um resto de sindicato. A passeata foi marcada para a Central do Brasil que na visão distorcida da nossa pequena burguesia era o centro dos trabalhadores. Na verdade não tinha operário, tinha gente pobre que morava no subúrbio e ia trabalhar no centro. E eles “Ah, vamos pra cima da classe operária”. No dia marcado, os caras editaram o AI-28. Os funcionários públicos ficaram intimidados. A Filosofia cancelou a passeata. E um resto dos estudantes foi para o CACO. A esquerda discutia muito mais que hoje em dia. Foi passando a hora e os radicais queriam sair. Depois de muita briga, acabamos saindo. Mas já saímos fora de hora. Os trabalhadores já tinham ido embora há tempos. Saímos por ali, numa calçada estreitinha, uns oitenta, uns caras com uns cartazes… Havia um cara da UNE, o Antônio Xavier, presidente temporário da UNE. Ai chegamos lá e eu sempre conto essa história. Não tinha mais trabalhador nenhum, só tinha o lumpemproletariado né. Mendigos e prostitutas que nos aplaudiram delirantemente. Nós fomos e isso gerou um clima de entusiasmo.
Veja o papel da imprensa. No dia seguinte, o jornal do Brasil botou “Primeiro ato, ato de força. Segundo ato, ato de apoio. E terceiro ato, de protesto”. Éramos nós, primeira página do Jornal do Brasil. Então era um destaque pequeno, mas causava um choque. Assim começamos. Fizemos depois uma passeata em solidariedade aos estudantes americanos, diante da baixada americana.
Essa foi uma primeira etapa, a da luta política contra a Lei Suplicy9. Nessa altura, nós estávamos conversando, e eu não era ainda do Partido Comunista, eu nunca apoiei as posições do Partido Comunista. As pessoas achavam que eu iria para a AP. E eu dizia “Eu tenho um negócio com a AP, que eu não…” E o pessoal do PCB tinha uma fração e me chamou pra destruir o partido. Então eu entrei no partido pra destruir o partido. E construir o partido operário.
RR: Em que ano que tu entraste no PCB?
VP: Em 1965. Eu entrei e foi um marasmo. Eu fui e fiquei até o final do ano. Eu dizia: “Eu vou fazer uma fração, vocês são uns merdas!”. Quando eu fui fazer a fração, abriram uma. Ai eu fui pra fração e depois fui da sua direção.
Assim, lutamos contra a Lei Suplicy no geral, e eles fizeram o negócio da universidade paga e cobrança de anuidades10.
Este foi um tema de 66. Primeiro começou com uma passeata reprimida em Belo Horizonte. E o Brasil se levantou em solidariedade. O primeiro sinal de que o mal-estar era geral. Nós botamos cinco mil pessoas na rua. Quem saiu dessa vez foi a Filosofia. Não fizemos a primeira passeata. E você vê como o esquerdismo é: quem tinha uma porção de esquerdistas era o PCdoB11, que nós chamávamos “Tigres de Papel”. Eles queriam passar pelo Ministério do Exército. Nós dizíamos “De jeito nenhum, vamos entrar no Campo de Santana, não queremos confronto”. E aí fomos pras escolas, pra não pagar anuidade. Essa luta, em geral, foi derrotada. Nós esquecemos que existia o sistema financeiro, só quinze por cento tinham pago, parecia que foi um grande sucesso para nós. Mas, na verdade, 80% tinham pago pelo banco. Não eram os estudantes, eram os pais. Os pais não queriam os filhos fora das escolas, então iam lá e pagavam pelo banco. O último dia chegou e o cara da secretaria, sabendo que eu não era tão maluco, e querendo evitar confusão, chegou e mostrou: “Olha aqui, oitenta por cento pago”. Nisso, mandei recuar o movimento. Foi uma choradeira, um desastre. Uma das maiores derrotas que já tive no movimento de massas. E o choro e a esculhambação em cima de mim, né. Mas tinha que recuar, ia fazer o quê? Mandei o pessoal pagar. Foi uma derrota muito importante pra mim.
A anuidade era mais pelo impacto simbólico, seu valor não era caro. Os reitores diziam: “Assim a gente arruma dinheiro pra Universidade”. Porque a ditadura não dava dinheiro, então não tinha verba. O reitor era ganho para ideia de pagar alguma coisa. Mas essa luta se espalhou. E perdeu em todos os cantos. Eu e outros companheiros fomos suspensos por um ano. Mas virei uma liderança Estadual.
RR: A Dissidência não tinha muita articulação, né? Havia uma separação entre São Paulo e Rio. A AP que fazia a unidade.
VP: Não, não. Estava começando a ter contato. E a AP fazia aliança com a gente, no Rio. Porque nós éramos pela esquerda. Direita era o tradicional, o Partidão. A luta da AP era sempre contra o Partidão. Mas nós reorganizamos a UNE. O Daniel Aarão Reis, que era meu primeiro vice-presidente no CACO, foi pra ser presidente da UME (União Metropolitana dos Estudantes), a UEE da época. O Daniel foi fazer um trabalho excepcional, durante um ano, de montagem, de trabalho. Pra ampliar a saída federal. E foi pra UEG, que hoje é a UERJ. Foi conhecer os independentes, foi pra Rural, que não era nem do nosso Estado, era do Estado do Rio. E fomos cuidar da parte da reconstrução do Calabouço12. O Daniel fez um trabalho de organização muito bom, mas os dois movimentos de 67 são da Universidade Rural.
Por outro lado, começaram a fazer autocrítica das discussões partidárias. Discutia tudo no centro acadêmico, de revolução socialista a libertação nacional. E nós começamos a fazer trabalho de massa e é a massa que ensina. Você começa a fazer trabalho e você aprende. Eu sempre gozei a Convergência, porque dizia “Ô Cyro13, a primeira coisa que eu aprendi no movimento de massas é que tem que recuar, as vezes”. Não tem esse negócio de só ir pra frente, tem que recuar. E a gente começou a ver que não dava. A gente tratar movimento estudantil como movimento auxiliar tudo bem, mas não podia ser como bucha de canhão. “A pequena burguesia é isso mesmo, o negócio é acender a chispa que vai iluminar a classe operária”. E nós dizemos “Olha, isso não tá certo”. Quem lida com a massa representa, você é eleito pelos estudantes. Não pode fazer qualquer coisa maluca nesse nível.
Nós começamos a refletir bastante. “Não, esse processo vai acabar um ano depois”. No congresso da UNE de Valinhos (1967), onde nós discutimos ainda as teses da revolução, mas dissemos “Jamais faremos isso aqui, proibimos essa discussão”. E um ano depois nós ganhamos o congresso de Valinhos, né. Perdemos a cabeça para o Travassos14 por erros de condução. No plenário, nós perdemos por seis votos.
1967 foi isso. Mas isso é definido no conselho de dezembro, onde nós tínhamos perdido a presidência, AP estava cheia de si. E naquela época era tudo por conselho que decidia mais que a diretoria. E ganhamos o conselho. Havia duas posições eram bem nítidas. A posição da AP era de que o centro tático era a luta pela derrubada da ditadura militar. E a nossa era contra a política educacional do governo. Era um abismo. A gente colocava “governo” já de provocação, né. Para a AP ficar mais irritada. E nós ganhamos.
Quando voltamos para o Rio, eu defendi que tínhamos de abandonar a luta pelo fim da anuidade. Foi difícil, porque mesmo nosso pessoal não queria. Aquela luta de 66 marcou. Eu dizia “Nós vamos perder sempre”. E luta que você perde sempre está errada. Eu dizia “Vamos lutar por mais verba”, que é o outro lado da medalha. Se a gente consegue verba, não tem porque cobrar anuidade. E você mobiliza muito mais estudante com a verba, porque esse dinheiro não conta. Não é uma reivindicação “não pagar anuidade”. É um argumento de natureza política, não é de natureza material. Bom, foi difícil. Dentro da gente mesmo teve problema. Depois nós ganhamos o conselho por um voto. Todas as forças contra nós. Só nós e independentes. Um voto. Quase perdemos. Muito esperto, o Jean Marc15 estava na luta contra a anuidade e a escola dele entrou. Quem estava contra era a direita, lá na escola dele. Ele fez o diabo. Se juntou com o Partidão, com a AP, com PCBR16, com tudo. Mas ganhamos por um voto. E isso foi o que definiu um pouco o nível do movimento. Quer dizer, você teve as primeiras grandes manifestações, a primeira no enterro do Edson, para concluir as obras do Calabouço. Porque nós tínhamos ganhado as obras do Calabouço, nós tínhamos feito o restaurante em outro lugar, mas ganhamos. Porque a ditadura destruiu o Calabouço…
ID: Fala um pouco mais sobre o Calabouço.
VP: Era o restaurante da União Metropolitana dos Estudantes (UMES), dos pobres, bandejão. Aí eles queriam fechar. Iam pegar a antiga sede da UNE, porque teria uma reunião do FMI, e queriam aproveitar e passar o rodo. Num protesto contra o FMI, eu e mais uns caras fomos presos. O Márcio Moreira Alves17 estava lá e foi preso também. Daí eles arrombaram lá. O Calabouço era muito forte, o Calabouço era lugar de estudante pobre. E de pobres que não eram estudantes. Então fizeram uma arruaça, fizeram a luta, nós travamos, e eles ganharam um novo restaurante perto do Fórum. Mas o restaurante eles entregaram. Aliás, foi uma cena a entrega, eu e Daniel esculhambando o Negrão18 daqui pra ali. Imagine, o governo. Foi um escândalo, o Governador do Estado.
ID: O governador era o Negrão de Lima, na época?
VP: Era. Elinor Brito era o líder da FUEC (Frente Única dos Estudantes do Calabouço) e queria uma festa. Eu e Daniel entornamos o caldo neles. Mas tinha poeira, as pessoas comiam com poeira. Porque não acabavam as obras. Inauguram, mas não acabaram as obras. Ai começou a luta pela continuação do Calabouço. Era muita luta. Eles usavam uns cacete desse tamanho, com uma bandeirinha do Brasil desse tamanho. E sentavam a porrada, inclusive nos Volkswagem da classe média. Não tinha controle. O carro avançava. Era uma massa muito radicalizada. Então, nós apanhamos no Calabouço. Independente de críticas eventuais ali, trouxemos o Calabouço para o movimento estudantil e eles sempre foram assim, participavam da AMES, que era o secundário, e da UNE, que era o universitário. Eles tiveram um papel muito importante.
No episódio do Edson Luis, foi reivindicação para acabar o restaurante, não foi exatamente uma coisa ordenada pela ditadura. O soldado lá perdeu a cabeça e deu um tiro. Acontece muito no movimento de massas. Não acredito que tenha sido uma coisa deliberada, que eles tenham decidido. A ditadura não é burra. Os caras da ditadura não eram burros! Um sujeito lá fez uma burrice, o que despertou a manifestação de massas. Em cima de quê? Luta reivindicatória! E aí virou manifestação contra a ditadura. “E se fosse um filho seu? Mataram um menino, mataram uma criança”19.
Juntou aquilo tudo. Entrou a classe média de uma forma geral, os pais levavam os seus filhos, as freiras levavam os seus alunos… Os sindicalistas apareceram no enterro. As mães fizeram suas associações. Então a sociedade começou a se organizar. Isso também foi importante. A Passeata dos Cem Mil também foi em cima de reivindicações. Nós exigimos a libertação do Jean Marc e de outros três presos, mas a luta era por mais verba. A gente programou, “vamos começar a luta em junho, por mais verba”. Organizamos tudo, chamamos gente, fomos lá e fizemos duas ou três manifestações na rua. Pegávamos a contramão, fechávamos o trânsito. Com a organização do movimento estudantil de rua, nós éramos muito bem organizados em negócio de manifestação de rua. E mensageiro vem de lá, mensageiro vem daqui, para saber se a polícia tava vindo. “Tem um carro” e eu dizia “queima!”, e a gente queimava tudo que era carro de polícia. Mas não os policiais. Nunca fizemos nenhuma hostilidade as pessoas e tal. Mas eles vinham, porque as vezes eram de um departamento qualquer da polícia. Era um movimento muito desenvolvido o movimento da gente nessa altura, em 68. Bom, numa dessas, a gente fez a passeata. A gente marcou no MEC. Aí a polícia tomou o MEC. A gente foi pra Rio Branco, fez a passeata tradicional, até a Central do Brasil. Aí a Globo fez um editorial dizendo que nós queríamos anarquia, porque fomos lá marchar, mas nós queríamos dialogar.
RR: Mais ou menos, quantas pessoas tinham nessas passeatas?
VP: De duas a cinco mil pessoas, era isso que tinha nas passeatas. Não era mais que isso. Agora, de vez em quando enchia mais.
ID: Mas o enterro do Edson Luís foi onde se começou a encher?
VP: Aí tinham umas cem mil pessoas. E era feriado. E essas coisas são assim, você não pode comparar manifestação em dia útil pra feriado. Porque em dia útil o pessoal se incorpora. Passa, salta do ônibus, faz o que você quiser. Assim como a Passeata dos Cem Mil, foi ponto facultativo. Só ia pra lá quem queria ir. Então, bom, quando O Globo fez isso, nós marcamos a manifestação e decidimos usar a violência pela primeira vez. Por quê? Porque nós sempre fugimos. Sempre fugimos. Nós dizíamos “Nosso objetivo é ganhar a população, mostrar nossas reivindicações, denunciar a ditadura”, e tal. Mas o que acontecia, quando a polícia chegava? Nós dissolvíamos a manifestação. Isso depois de apanhar muito, é claro. E tinha outro lugar onde a gente puxava a manifestação meia hora depois, uma hora depois. Uma hora depois vinha outra manifestação. Ai vinha a polícia. A gente dissolvia. Claro que sempre tinha um arranca-rabo aqui, aqui e ali. Então dessa vez, ao invés de fugir, nós iríamos para o pau. Fomos para o pau para mostrar que queríamos dialogar.
No início do ano, março, abril, a Igreja católica, com Dom Castor Pinto, fez uma proposta de diálogo que dividiu a esquerda. Nós imediatamente aceitamos o diálogo com a ditadura. E a AP imediatamente disse que não, nunca. Que era uma traição. O José Arantes20 chegou para mim antes da reunião e disse “Vladimir, você tem certeza dessa merda de diálogo?” Eu disse “Completa! Não tenho a menor dúvida”. O José Arantes foi lá e arrasou a AP na reunião. Pegou Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo do Lênin. E fez uma intervenção monumental, intelectualmente brilhante. Nós aceitamos e nós fomos. Porque eles queriam isolar as lideranças estudantis da UNE. O Franklin Martins foi lá e fez uma confusão. E nós fomos. O Partidão se juntou com a Igreja, para fazer o diálogo, jogando as entidades estudantis para escanteio. Começamos a discutir as coisas, e fomos pra base. Chamar plenária, assembleia geral. O Partidão fez também uma mobilização na PUC, onde eles tinham aliança com a direita no DCE. Mas o onde Partidão tinha escola, nós fomos ganhando. E quando eles fizeram o ato pelo diálogo na PUC, eu recusei, disse que não ia sentar em reunião divisionista, sentei lá embaixo. E eles “Não, isso é um ato de apoio à UNE”. Ato esvaziado. Porque os delegados todos que eles levaram eram nossos. Então foi ganho na base da massa, com diálogo. E com isso também, de fazer o diálogo, ganhamos parte da direita do DCE da PUC. Dizia “Vamos discutir” e eles “Ah, mas vocês só fazem reunião clandestina” e eu “Claro, senão prendem a gente”. E desafiaram a gente a fazer na engenharia da PUC, que era um antro de reacionário, né. As engenharias eram muito divididas. Uma esquerda e uma direita muito radicalizadas, sobretudo a direita. E disse: “Nós vamos. Mas se dissolverem a reunião vocês vão passar a ir nas nossas reuniões clandestinas”. Aí enfim fechamos um acordo. E fomos fazer a reunião, que foi dissolvida a bombas, né. Pela direita. Não foi nem pela polícia, foi pela direita. E aí eles passaram a se integrar nas reuniões clandestinas. E travamos lutas em conjunto por verba. Íamos no restaurante da PUC, o cara do DCE da PUC, que era um cara muito sério, fazia o discurso dele. Ele dizia: “sei que não querem política, mas a verba…” E eu dizia: “a ditadura não dá verba”. Enfim, cada um na sua. Mas fazíamos a luta em conjunto. Assim se ampliou muito o movimento, né. E nós então, quando fomos pra esse negócio do MEC, nós queríamos o diálogo.
Nós estávamos com muita legitimidade. Então fomos lá, fazer a ocupação do MEC, porque já sabíamos que a polícia estaria lá. Nos separamos em três colunas e as três foram rechaçadas, evidentemente. Mas nós estávamos com pau e com pedra. Nossas armas eram isso. Pela primeira vez, levamos um molotov e jogamos no carro, incendiamos. E foi a primeira vez que a polícia usou o brucutu21. E aquela água, aquela inovação da PM. A água foi caindo, caindo. E o Brito diz “O Brucutu broxou”. Pronto, todo mundo subiu, os estudantes subiram no brucutu. Uma farra. O dia de grande “porralouquismo” da gente. Eu vi outro dia na televisão um filme que tinha um lutador que mordia a língua para sentir o gosto de sangue. Aquilo ali deixou a gente assim. Então, quando eu fui no caminho para o edifício, porque a gente tinha deixado um pessoal pra trás, na Rio Branco, fiz pela primeira vez uma barricada. Eu subi no teto de um Volks e falei pro batalhão da PM, pedindo pra eles se levantarem contra os oficiais. Criou o clima de confronto ali. “Vocês são pobres, trabalhadores”. E eles não mexeram o olho. Foi um negócio assim. Um silêncio sepulcral.
Depois, fomos para o edifício central, o Cid Benjamin22 todo rasgado. E isso foi… E aí fomos pra passeata na Rio Branco. Chegamos lá e tinha uma barricadamuito mixuruca, mas era uma força de reserva. E como não interrompemos o trânsito, a polícia teve liberdade de vir. Quando você vai contra o trânsito, a polícia não pode se mexer, não podia vir de carro, nem cavalo, tinha que vir a pé. E apostar corrida com estudante é muito difícil, né. Então nós tínhamos uma grande vantagem. E eles vieram com aqueles passos, aquelas trombas. E o Marquinhos da economia comigo, e eles vieram chegando, chegando. E eu já tinha dito para Marquinhos que nós íamos pra porrada. E aí quando chegaram uns 50 metros né, o Marquinhos dizia “Vão sentar o cacetete na gente, o que vamos fazer?” Falei “Vamos pra cima deles”. Eles chegaram, fomos pra cima deles, batemos neles. Uma surpresa. É claro que eles são melhores lutadores que a gente, mais equipados. E nós nessa altura não éramos uma massa. Mas era um impacto, né. Eles verem os caras que eles sempre batiam se voltar contra eles. A massa saiu, seguiam os caras pelos becos no Centro do Rio e tal. Fomos para a Uruguaiana. Porque sabíamos que vinha a cavalaria e era a rua mais estreita. Aí teve de tudo. Bola de gude, cortiça. Um garoto trepou no cavalo da PM. Enfim, tudo que você pode imaginar. Até que tacaram fogo no caminhão do Exército, que era uma coisa terminantemente proibida por nós. Gente irresponsável, porque a gente tinha uma orientação contrária. Tocaram fogo num carro. Aí que o Jean Marc foi preso, coitado. Inocente. Quando veio a PM, nós mandamos dissolver. Mas a porrada continuou. E isso aí foi o que? Uma passeata pelo diálogo para resolver os problemas de verbas da Universidade. Queríamos mostrar nossa disposição para o diálogo. Mas usamos a violência pela primeira vez. E é isso que precipitou os acontecimentos.
No dia seguinte, ocupamos a Universidade. Obrigamos os professores a discutirem com a gente, no anfiteatro. Iam votar umas teses. Vocês não imaginam para a época o que era. Uns catedráticos. Pra eles aquilo era um negócio vetusto, um negócio terrível. Fizemos corredor polonês, obrigamos eles a sair. Aquele foi o ato de maior importância ideológica para quebrar a dominação da ordem dentro da Universidade. O ato de maior impacto. O ato mais importante não foi a porrada com a polícia, foi o professor descer. E ser obrigado a conversar. Como em todo mundo tem uns professores mais corajosos, outros menos corajosos. Um professor se comportou muito bem, era um homem íntegro. Ele aguentou o papo. Dissentiu algumas vezes da gente. Clementino Fraga Filho. Dissentiu. Porque teve professor que votava tudo com a gente, né. E no final teve consenso. “E o que vocês querem fazer?” “Nós queremos sair”. Porque teve um episódio em 1966 quando nós ocupamos a medicina que fomos brutalmente reprimidos. E perdemos toda a massa da medicina. Nunca mais nenhum daqueles estudantes voltou a fazer movimento. Ou virou comunista ou nunca mais voltou. Só voltaram na Passeata dos cem mil. Aquela massa foi perdida para o movimento estudantil, porque foi massacrada. Aquelas coisas de enfiar cacetete em vagina de mulher, batia até a exaustão, enfiar a porrada, mijar em preso, tudo isso eles faziam. Por isso, nós queríamos sair. E nessa altura nós tínhamos montado um comitê, junto com Vagner e Jean Marc, mas Jean Marc foi preso na véspera. Era pra montar um comando de orientação militar, digamos assim. O Bagner ficou sozinho ali, mas fizemos um grupo. Primeiro fizemos um barulho a leste, pra tacar a oeste. Fizemos um barulho a leste pra polícia interceder e nós saímos lá pelo outro lado. O Vagner foi com uma turma de trinta caras dizendo que ia para Praia de Botafogo, para atrair a polícia. Foram as iscas, coitados. Foram todos presos. E nós saímos pela esquerda. E eu saí no meio da massa. Nos armamos com pau, com pedra. E saímos pela esquerda, na direção do campo do Botafogo. Mas saímos. Mas tinha o que? Mil e seiscentos estudantes. Quatrocentos foram presos. Fizeram a mesma barbaridade em 66. Mas nós já saímos, dessa vez, preparados para o movimento. Uma coisa que aprendi com o movimento de massas, e que hoje o pessoal não tem, é que todo movimento de massas tem que ter desdobramentos. E nós já sabíamos disso. Então já saímos com a manifestação marcada pra manhã seguinte, coisa que nós nunca tínhamos feito, só fazíamos passeata de tarde. Comício-relâmpago nós fazíamos às onze horas, meio dia, também. Mas marcamos. Saímos e foi uma repercussão tremenda. TV, barbaridade, uma indignação geral. O pessoal ficou puto mesmo com a polícia. Na sexta de manhã nós fomos pra Praça Tiradentes, que era um lugar que nós nunca tínhamos ido. Quando a gente chegou, o comércio abriu e começou a fechar. Pronto. Pedra e pau para todo o lado. E vinha o pessoal descendo, para aplaudir a gente. Jogavam papel picado. Apoio total no Centro da cidade. Mas dessa vez desceram, faziam coluna pra bater palma pra gente. Marcamos uma manifestação no MEC. Uma parte ia para o MEC, mas uma parte que senta pra armar, organizar, que eram uns dois mil e quinhentos estudantes, iam pra outro lugar, pra garantir que a manifestação saísse. E aí depois passavam no lugar oficial. No lugar oficial estava o Brito e o Franklin. “Ah não, tem muita polícia, não dá nem pra chegar perto”. Foi a sexta-feira sangrenta. Demos a volta na Cinelândia, fomos na embaixada americana, apedrejamos a embaixada americana. Atiraram e começou o corre-corre. Eu fui pra rua do quartel da PM, fui pra um comício e eles estavam atirando de fuzil. O pessoal foi embora, eu fiquei sozinho lá escondido num poste.
RR: E aí começou a arma letal, né? Foi a mudança pra arma letal.
VP: Foi, foi.
RR: Aí começaram a dissolver. Ou seja, o AI-5 começou neste momento.
VP: É. Não diria isso, porque com o AI-5 os que eram políticos já estavam presos. Mas a repressão foi maior. Encontrei uma alma cândida que disse “Menino, você está sozinho!”. E me levou para o carro até Central do Brasil. E eu tinha um ponto quatro horas da tarde no Diagonal do Leblon, que era um ponto de encontro da gente. Quatro horas da tarde estamos lá no ponto e o pau quebrando no Centro. E todas as lideranças ali, no Diagonal. E a gente vibrando né. E a Rural chegou atrasada, o Calabouço chegou atrasado. Enfim, aquilo virou um inferno. A população se rebelou. Uma parte da população começou a jogar pedra e brigar com a polícia. Bom, nós fizemos a reunião, foi divertido também, porque o finado Marcos Medeiros23 do PCBR disse “Estamos em insurreição”. Eu disse “Calma, Marcos!”. E tinham uns caras do Partidão que queriam recuar imediatamente. Dissemos não. Nesta sexta-feira, marcamos uma passeata pra terça-feira.
RR: Como era o esquema de convocação?
VP: Ônibus. Botava no ônibus, panfleto no ônibus chamando. Panfleto, todo mundo sábado e domingo na rua, na praia, com panfleto. O panfleto da gente dizia “Vamos incendiar o Rio de Janeiro”. O Negrão decidiu permitir. Fez ponto facultativo na terça-feira e disse “Por favor, não incendeiem a nossa cidade, não toquem fogo”, como se a gente fosse tacar fogo nos prédios. E decretou ponto facultativo, permitindo a manifestação.
ID: E ele falou isso na televisão?
VP: Falou
ID: Então ele também convocou pra manifestação, na prática?
VP: Claro. Mas nessa altura não tinha como. Era um clima que todo mundo já sabia. Pra você ver, eu andava na rua em Copacabana e as crianças brincavam de polícia e estudante. Eu vi isso, não é invenção, não. Onde eu andava os meninos olhavam pra mim e gritavam “Estudante!”. Porque nós fazíamos passeata em tudo, inclusive na Nossa Senhora de Copacabana. Fazíamos muitos comícios-relâmpago. Inclusive, existia um apoio político no movimento estudantil, contra a guerra do Vietnã. Nós fizemos centenas de comícios-relâmpago contra a guerra do Vietnã. Centenas. Não dava pra fazer manifestação de massa. E às vezes fazíamos pelos interesses estudantis. A polícia chegava e a gente ia embora. Uma vez cheguei a ser preso mesmo, por uma besteira dessa de comício. Mas enfim, convocamos a manifestação.
Cem mil pessoas! Nós não esperávamos tanto. Esperávamos muita gente, mas era muita gente mesmo. E a representatividade. Ia artista, professor. Até minha mãe foi. Minha mãe nunca tinha ido a nada e levaram minha mãe para ver o filho. Coitada da minha mãe. Reacionária. Então foi um negócio notável, o comportamento da massa. Todo mundo entendeu também como se deve conduzir. Em ordem. Fizemos uma grande demonstração de maturidade política nesse dia. Daí foram lá falar com Costa e Silva, tirar uma Comissão. Já tinham tirado no dia do Edson Luís, comissão popular, políticos, sindicalistas, mães, padres, professores, mas não funcionou. Foi aquela missa da Candelária que teve muita repressão. Mas dessa vez o Costa e Silva decidiu receber e fez-se a comissão. Eu não fui. Outros foram. Acho que talvez tenha tido um pouco de esquerdismo, porque claro que os militares eram brutos. Enfim, o Costa e Silva exigiu que não se fizessem mais manifestações. Acho que se o pessoal tivesse mais a fim de papo… “claro, vamos ver…”. Em troca da liberdade dos meninos. Mas o Franklin e o Marcos Medeiros foram e disseram que não. O Costa e Silva bateu a mão na mesa. Não sei descrever direito, pois não estava lá.
ID: A Comissão era composta por quem?
VP: Pelos estudantes, políticos, mãe, padres, o Pellegrino24, psicanalista que estava com a gente.
E a minha história acaba aí. Voltamos para a escola, e quando começaram as aulas eu fui preso. Fui preso por acaso. A polícia me seguia todo dia. Aeronáutica, DOPS… Quando me prenderam, foi por acaso, porque eu não tinha documento. Também por acaso, porque o meu documento era de Alagoas, eu dei para o meu pai tirar e ele esqueceu. Estava sem documento e fui preso. Para averiguações. O cara pensou que eu era maconheiro, quando eu comecei a jogar coisa fora. Mas era papel do movimento estudantil.
Neste dia, era para eu estar dormindo em casa, né. Não acharam casa pra eu dormir naquele dia. Eu tive que ficar até mais tarde para achar um canto pra dormir. Muita desorganização da gente. Então, acabei parando. O movimento caiu, passou a ser mais desse pessoal organizado, uns mil e quinhentos estudantes. Ao mesmo tempo, houve eleições estudantis e nós ganhamos tudo. Contra todos os grupos reunidos, nós ganhamos. Porque nós éramos realmente representativos. O Carlos Alberto25 foi para o DCE. O Franklin foi pra me substituir na UMES. Mas eu aí perdi o contato. Fui preso, um mês e meio, depois fui solto. Fui me esconder em São Paulo. Depois fui para Ibiúna, onde fui preso de novo. Então, realmente, não posso examinar. Eu sei o que todo mundo diz, que o movimento foi caindo, foi ficando de vanguarda até o AI-5. O movimento estudantil acabou naquele momento.
2) Ibiúna, prisão e refluxo
ID: O Congresso de Ibiúna foi um ponto de inflexão? Fala um pouco mais sobre ele.
VP: O Congresso foi uma “porralouquice”, um joga a culpa no outro. Ofereceram para fazer o Congresso no Rio, eu recusei, porque disse que não tinha estrutura para fazer. São Paulo disse que fazia. O José Dirceu26 estava querendo muito legitimação, porque em São Paulo havia duas UEEs, a dele e a da Catarina27. E o Zé Dirceu estava ganhando força, dentro da outra UEE. E disse que topava. Essa foi a parte que eu vi. Eu vi nas entrevistas com Dirceu que ele queria um congresso aberto, a AP não topou. O fato é que o Congresso de Valinhos, a polícia chegou 24hrs depois. Havia 450 pessoas. E no Ibiúna, tinham oitocentos delegados, mais de mil pessoas. Numa cidadezinha, fizeram aberto. O Zé dizia que não era culpa dele, mas aí se distribuem as culpas. O Paulo de Tarso28 deu uma entrevista falando disso, eu ainda não li. Ele era o organizador e virou inimigo do Dirceu depois. O Dirceu queria um congresso aberto. Deve-se ter tido alguma informação de que não iria se reprimir. Fiquei com essa impressão. O Abreu Sodré29 disse que não iria reprimir, e ele era um cara mais liberal. E o pessoal confiou nesse esquema.
RR: Mas o movimento já estava derrotado. Ou não?
VP: Olha, veja bem… Por mais que se fale de 68, nós do Brasil não temos muito a ver com a França. Na França, o movimento estudantil puxou uma luta pelo poder. Mesmo que não quisesse. Mas puxou. Porque tinha uma classe operária atuante, com a direção do Partido Comunista. E o movimento estudantil aqui nunca ameaçou o Estado. O AI-5 não saiu pelos estudantes. O que tinha acontecido é que você tinha mais estrutura para fazer o movimento estudantil continuar, depois do AI-5. Com outros critérios. E talvez evitar uma debandada tão forte para as ações armadas. Porque as pessoas ficaram torradas. Eles prendiam qualquer um que estivesse em Ibiúna.
ID: E o movimento estudantil ficou um pouco descabeçado depois de Ibiúna?
VP: Não diria isso. Tinha gente para continuar. O Jean Marc foi solto. Foi preso, mas saiu com nome falso. Tinha gente da UEE do Rio. O presidente da UEE daqui ficou aqui, não foi a Ibiúna. Aliás, o Brito também não foi.
RR: Ou seja, o movimento estudantil poderia ter continuado.
VP: Poderia. Eles ficaram aqui como força de reserva. Eles achavam que poderiam cair, segundo o Brito me disse. E ficaram aqui. Então, tinha condições.
RR: Ou seja, podia seguir o movimento de massas, por via estudantil, num nível menor. Mas ele tinha chance de seguir.
VP: Sim, menor. O problema é que você tinha novecentas lideranças, catalogadas e fichadas pela polícia. Agora, o problema pode ser que não tenha nada a ver com movimento estudantil. Movimento estudantil era um movimento importante, socialmente importante. Mas nem as ações armadas forçaram o AI-5.
O AI-5 foi rearranjo das classes dominantes que vinha desde o tempo do Castelo Branco contra do Costa e Silva. O pessoal usava o movimento estudantil para dizer que era uma bagunça. Mas com a luta armada era pior. Eles se voltaram contra os poderes instituídos. O ato deles, o que eles fizeram, cassou muita gente da ARENA. O negócio deles era fechar o Congresso. Eles queriam ditadura pura e dura. O que mais aconteceu em 68 foi um pretexto. Agora, o que eles fizeram em 68? O principal objetivo não era lascar a ação armada nem o movimento estudantil. Claro que teve essa dimensão. Mas o objetivo era tirar os adversários de direita do campo. Prenderam os caras todos da direita. Eles abandonaram a frente ampla, colocaram a frente de lado. E caçaram mandato da direita, fecharam as divisões dentro. Fizeram a ditadura pura e dura. O que restava daí era adversário. O MDB virou um adversário. O MDB foi criado pela ditadura. Mas virou adversário. Um adversário menor, mas um adversário. Eles resolveram o problema da hegemonia dentro do bloco deles. Essa que foi a questão resolvida com o AI-5, a questão da hegemonia.
ID: Como o imperialismo se comportou neste momento?
VP: Apoiando. Eu que não sou dessa tendência de achar que está tudo ligado, que o imperialismo manda e desmanda. O imperialismo apoiou, como apoiou 64, em maior ou menor extensão. Mas ele apoia em função de forças internas. É um absurdo esquecer isso. O imperialismo apoia aquelas forças que são de seu agrado, naturalmente. E não são eles que criam as coisas. As pessoas pensam que eles falam “Agora vamos chegar ali no Peru”, e não é assim. Aquilo corresponde a tensões internas poderosas.
Eu acho que o imperialismo apoiou ali. E a gente exagera um pouco. Na época a gente pensava que os americanos mandavam. Não é assim. Era a mentalidade dos dominados. A cultura da direita queria imitar os Estados Unidos. Não é que os Estados Unidos queria impor a ditadura, mas a direita brasileira queria impor, porque achava que os Estados Unidos eram um modelo. Por exemplo, as faculdades operacionais que eles começaram a montar aqui eram baseadas nas escolas superiores americanas. Achávamos que era pra impossibilitar nós construirmos a tecnologia nacional. Eles até podiam ficar felizes com isso, mas não era. Era mais imitação servil da direita brasileira do que os americanos preocupados com isso.
Os Estados Unidos influenciaram muito, os americanos influenciaram muito o Brasil. Não o imperialismo, mas as lutas americanas. No Brasil quem mais influenciou foram os Estados Unidos, mais do que Paris.
ID: A juventude americana?
VP: A luta contra a guerra do Vietnã, a luta armada dos negros, o que você quiser. As mulheres. O movimento negro não influenciou tanto pela questão racial, que no Brasil não tinha ainda florescido.
Na França, eles também tinham problemas de transição. Se você pegar o capitalismo desenvolvido estava havendo as transições da revolução industrial. Então você pega o livro do Braverman30, Trabalho e capital monopolista, e ele diz que os trabalhadores não aguentavam mais a vida no modo fordista de produção. Na cadeia de montagem. Ocorria uma mudança na classe trabalhadora. Então esse clima afeta todas as relações sociais.
ID: Quando acontece a prisão em Ibiúna, você fica na prisão até o sequestro do embaixador?
VP: Fico.
ID: Como foi essa experiência?
VP: Varia. Eu conheci muitas cadeias. Fui muito transferido. Então variou. Gente mais madura, gente menos madura, dependendo de como se comporta diante da repressão. Em certo nível, a realidade é a mesma. Tem que saber recuar, tem que saber avançar. Continuei lutando dentro da cadeia. Mas as condições são diferentes.
ID: O sequestro foi em setembro de 69. Ficou quase um ano lá, não foi?
VP: É, mais ou menos. Uma parte junto com Dirceu, com Travassos, com Franklin, depois fiquei muito tempo sozinho. Aqui na Marinha. Depois passei um mês com outras pessoas aqui na Marinha. Depois voltei a ficar sozinho. E no final fiquei sozinho de novo, em São Paulo. Mas em todas elas era uma luta, uma briga. Tem que saber que a correlação de forças é desfavorável. Mas em todo canto tem alguma coisa pra você lutar, em todo canto tem um aliado seu. Não tinha um lugar lá onde não tivesse alguém que quisesse me ajudar. Em São Paulo as pessoas me ajudaram. E lá eles apanharam por minha causa. Eu estive na polícia do Rio, de São Paulo, no DOPS do Rio, no DOPS de São Paulo, na Marinha. E varia mesmo, porque os corpos militares são diferentes. Mas no meu caso varia mesmo. Não fui torturado. Na polícia de São Paulo levei uns tapas só. Metido à besta, eu disse que não falava nada, só pro juiz auditor. Aí eu levei uns tapas e eles disseram que iam me levar pra Minas, para me torturar. Graças a Deus me soltaram. Disseram que eu não queria sair. O Travassos fez críticas, mas mesmo o Travassos queria sair. Quem é doido para querer ficar preso? É porque eu e o Travassos éramos críticos, o Travassos mais do que eu, à luta armada.
RR: Isso quando teve o sequestro?
VP: A Ana Maria, minha mulher, dizia, “Vão te soltar”. Aí eu tinha que ir lá pro julgamento e eu me deitava no carro, porque podia ter tiroteio. E eu morro de medo do esquerdismo. O pessoal faz maluquice. Qualquer dia podia invadir um quartel. O meu pessoal eu tinha mais confiança, naturalmente. Mas nunca tinham feito ação armada. Na verdade começaram já em 68, né. Você vê como a tensão leva os caras a fazer isso. O pessoal tudo marxista e começa a fazer ação.
ID: O objetivo era tirar o Travasso, né?
VP: O objetivo inicial era. O dinheiro era pra fazer revolução. Mas aí, saímos. Mas a luta é sempre assim. E varia, o comportamento das pessoas é diferente. Você vai vendo as pessoas como são, né. Essas horas são horas difíceis. Mas no geral o pessoal se comportou bem. Não vi tanta mesquinharia na cadeira. Havia alguma. Mas não foi tanta não. E os caras variam também. O “filho da puta”, o “bonzinho”, “o legal”, “o cara constrangido”. Às vezes deixavam entrar um livro. Variava. No meu tempo eu peguei a Bíblia. Mas depende, tem cara que é filho da puta mesmo. Em São Paulo tinha um cara que mandava tirar o jornal que a gente colocava na janela, no frio da porra de São Paulo em julho. Mas isso é um doente mental, né?
ID: O movimento estudantil depois do AI-5 se debateu muito sobre uma estratégia mais marxista?
VP: Eu acho que não. Do que eu acompanhei dos relatos, do pessoal que fez ação armada, não. A minha organização só foi fazer ação armada no final de 68. Tirar arma de soldados. Depois assaltar banco. Era pra levar a revolução adiante, um negócio meio nebuloso. Não sei direito, porque eu sempre fui contra isso.
RR: Tua posição foi uma das poucas contrárias. Na esquerda brasileira, quantas lideranças do movimento estudantil desse período se colocaram assim? Não foram muitas, né?
VP: O meu grupo se dividiu. A votação foi apertada para eles irem para ação armada. Mas eles fizeram por cima, né? A direção fez ação armada. Depois, em abril de 69, fizeram um encontro.
RR: E aí deram a ação armada como fato consumado?
VP: Em abril chegaram já querendo. Mesmo assim foi duro, porque a sessão operária foi contra, e nos estudantes eles ganharam por um voto somente.
RR: Muita gente dividiu. Na prática, dividiria de qualquer jeito.
VP: Mas também já começa em abril a se fazer a auto-crítica. O meu grupo foi um grupo meio singular. “Não, mas queremos fazer movimento de massas”, foi a primeira auto-crítica, mas não adiantou. Depois que entrou nisso não tem como sair. Fez auto-crítica, mas continuou fazendo besteira.
RR: E quando que foi isso?
VP: Em 69, quando eu fui julgado. Depois me contaram. Mas minha posição no discurso foi clara: defendo a luta armada, mas disse que esse não era o caminho. Aquilo não ia levar a nada, era apenas uma ação de propaganda armada. Porque veja bem, uma coisa era você assaltar banco pra pegar dinheiro pra guerrilha. Podia ser errado, mas era inteligível. Você pega o dinheiro pra guerrilha, pois você tem um trabalho no campo e vai fazer uma guerrilha rural. Seus critérios podem ser foquistas, mas você tem um objetivo, um meio. Mas aquilo não era ossp. Você assaltava e essa era a ação política. Assalto a banco virou ação política.
Eu tive companheiros que participaram disso, em particular um companheiro de São Paulo que era muito meu amigo, Lauriberto31, que foi assassinado depois pela ditadura, quando voltou para o Brasil, de Cuba. E ele dizia “É isso, Vladimir. A gente jogava carta. Depois saía para o assalto. No dia seguinte, via a repercussão no jornal. Ganhava o dinheiro para sobreviver. E pensava no assalto da próxima semana”. Eu não quero nem usar o termo que ele usava… Perdeu-se completamente o sentido da história.
Em Cuba, houve um debate. Lauri, Zé Direceu, Arantes, o pessoal que o Marighella32 jogou fora, a dissidência. E mais cinco deles que vieram conversar com a gente no final, porque houve um debate, e eles queriam saber qual era o caminho. E eles se dispunham inclusive a ficar em Cuba com a gente. Aí discutimos. E a decisão foi fazer a luta armada no Brasil. E morreram todos.
RR: O balanço é pesado.
VP: Mas nós não fizemos nada que não faríamos nós mesmos. Nós queríamos voltar. Ficar em Cuba não adiantava nada. E eles discutiram com a gente, perguntaram o que a gente achava. E em acordo conosco acharam que tinham que voltar. Chegaram aqui e estava infiltrada gente, morreu todo mundo. Mas eles tinham uma fonte de auto-crítica própria. Era a vida que eles queriam levar. Era um negócio sem razão de ser, ia ser eliminado mesmo. Quem voltou foi dizimado.
E tinha um culto de dizer que ação armada não deu certo porque foi mal executada. Os cubanos colocaram na cabeça deles que o negócio era técnico. Mas houve uma turma do Marighella que chegou a voltar também, chegou a ir para Goiás. E morreram em Goiás, tentando fazer os contatos rurais. Pra tentar fazer a guerrilha rural. Então há diversos exemplos, cada um tem que fazer a sua reflexão. Mas em geral a luta urbana é muito fraca, muito sem sentido. O PCdoB pelo menos tentou fazer uma linha, lá no Araguaia. Mas aqui no Rio, uma pena. O pessoal do movimento estudantil tinha que fazer um trabalho muito longo de aproximação com o operariado, liderança sindical, camponesa, devagarinho. Depois de um ritmo alucinante de 68, você cair num ritmo de tartaruga é difícil. Então o pessoal todo foi pra ação armada. E o Daniel dizia “Vladimir, eu não sei se eu também tivesse ficado no Brasil eu não iria pra ação”. Mas o fato é que eu fui contra.
RR: Desistiram do movimento de massas antes do movimento perder.
VP: Não significa que seguir outro caminho teria nos levado a glória. Seria outra história só. Era difícil. Tanto que você vê, outros partidos que não fizeram luta armada foram dizimados. Ia ser muita perda, pouco rendimento. Agora, é tudo também parte da tradição. Não temos tradição teórica. Eu não estou falando de grandes estudos, não. É aquela história horrível do PCB, dá cinco livros do Lênin e você aprende que a revolução se faz assim. O pior é isso. Se não soubesse nada era melhor, porque você aprendia com a vida. Um dia, minha ex mulher foi fazer um negócio dos Sem Terra, minha ex-mulher é uma teórica do campo, sobretudo a respeito das classes dominantes. Foi a primeira a lançar artigos sobre a UDR33. E ela foi fazer um curso e teve alguma dificuldade com o MST. E eu disse pra ela “É claro. Isso aqui é um tipo de cultura onde você vai a São Paulo, o MST faz os quadros em São Paulo. E depois você volta pro seu Estado e você é um monitor, você dá aula para o pessoal da capital. E depois esse pessoal da capital vai dar aula para pessoal do interior.”. Quer dizer, aquilo ali não é uma reflexão. Claro que dá errado. Porque aquilo vai ficando cada vez mais artificial. Não teve a reflexão. Revolução não é consertar eletrodomésticos.
RR: Tu segues para o México e depois Cuba. Tua volta é em 79?
VP: É, 79. Mas eu fui para México. E depois forçado pra Cuba. Porque eu sabia que Cuba era um feudo do Mariguella. E eu queria ter contato com o Brasil. E o pessoal com Paris, naturalmente. Não é nem porque “Ah, Paris, festa”. Porque inclusive tinha vida, tinha a Liga.34 Mas eu queria ter contato com o Brasil. Eu dizia: “Eu não vou pra Cuba”. Aí eu peguei o Travassos e o Dirceu. Primeira reunião que fizemos, eles ganharam a reunião. Eu dizia: “olha, aqui é outro mundo”. Na segunda reunião, os caras da luta armada não chamaram mais a gente, foram fazer lutas à parte.
RR: Pra decidir para onde iam?
VP: Para qualquer coisa. Porque perdiam reunião para os estudantes. Mesmo os que flertavam com a luta armada, porque o Zé Dirceu flertava com a luta armada. Daí nós ríamos. Não nos metíamos, não dávamos declaração, nada. A hegemonia no Brasil era do pessoal da ação armada, então a gente calou a boca. E dizia “A hegemonia é deles”. E não dávamos nem entrevista. E no final, na última vez que saímos do México, demos uma entrevista. E foi mal. O clima era o pior possível. Eu vi um cara ameaçar dar um tiro no Zé Ibrahim35, quando fosse pro treinamento. E fizemos amizades ao contrário, como o Gregório Bezerra, que era um reformista adorável. Nós demos pra ele um livro do Lenin, À Esquerda. E ele depois deu o Esquerdismo pra gente. E ficamos indo pra livraria, fazendo exercícios. Fazendo flexão. Eu não fazia, imagina. Mas fizemos muita amizade com o Bezerra. E nos colocamos à parte. Quem falava era a Maria Augusta36, porque ela era a locutora, ela falava inglês. E calamos a boca. E quando chegamos em Cuba continuamos na mesma. Em Cuba era o recorrido. Primeiro, que coisa desagradável. Assim que o avião estava descendo em Havana eu só via verde-oliva. Eu já não gostei. E chegou lá todo mundo fardado. Bom… Daí o Fidel fez a demagogia dele no aeroporto e eu comecei a me aborrecer. Os caras da luta armada puxando o saco do Fidel. E eu fiz uma observação contra ele. E o cara da rádio: “está gravando”. E aí o cara da rádio piscou o olho pra mim. E eu pensei: “Estou em casa, tem gente crítica aqui também”. E Fidel tá lá, numa mesa enorme falando. E eu já não aguentando mais. Perguntei se ele podia ter feito alguma coisa sem a ajuda da URSS. E ele: “Não, é claro, a URSS…”. Claro. Sustentado pela União Soviética. E eu briguei com os cubanos desde que cheguei. E eles colocaram a polícia pra dialogar com a gente.
RR: Então o Flávio37 estava aí?
VP: Não foi. O Flavio não foi pra Cuba. Ele ficou trabalhando com o Ricardo Villas38. E depois foi para Paris.
Mas enfim, lá encheram o saco. Fiz uma provocação com os cubanos. Na primeira reunião, o Zarattini não aguentou e começou a defender aquelas posições de revolução nacional, levantou e disse: “Mas o Vladimir aqui tem uma posição diferente”. Aí me obrigou a falar. Dai já sabe, né. “Revolução internacional, fazer o que o Che disse. Revolução socialista na América. Nós estamos com Che, ponto”. Daí no dia seguinte a manchete do jornal sou eu. Os caras foram burros, né, porque eu não tinha o menor interesse. “E a nova Constituição do Costa e Silva”. “Podem fazer uma, duas, três constituições. Passaremos uma, duas, três revoluções na América Latina”, essas coisas. Fiquei popular, é claro. E é óbvio. O pessoal não era um pessoal de traquejo político. E eles que provocavam a gente, porque a gente não queria.
Aí eu fui pra uma casa, os caras foram pra outra casa. Eu fiz o treinamento legal. Eu estava no hospital, quando sai, já estavam treinando. Urbano. Aí me pegaram. Aí fui fazer o treinamento. Atirar, fazer bomba. Se a revolução dependesse das minhas bombas eu estava ferrado. Mas eu sempre fui bom de tiro. Eu fiz. Me diverti com alguns companheiros.. Tinha uma hora que eles diziam “Trabalho voluntário!”. Eu e Jeová (companheiro assassinado pela ditadura posteriormente) escolhíamos quebrar pedra. E ele dizia “Você é um direitista de merda” e eu gozando ele de esquerdista e não sei o que. Mas é um cara que deu a vida, e ele sabia que morreria. A maior parte daquele pessoal ali sabia que não ia fazer mais porra nenhuma da vida. Aí eu fiz o treinamento urbano. Aí parou. E eu ficava lá… “ Direito de voltar, direito de voltar”.
Aquele treinamento era uma fábrica de cadáveres. Porque o cara faz, acha que sabe, vai lá e morre. Não é que seja inútil. Se você tivesse alguma orientação política. Aprende algumas técnicas rudimentares e vai fazer o foco. E morre. Até o Zé Dirceu já citou isso depois, depois que virou estadista. Eu dizia: “Eu não quero treinamento porra nenhuma, eu quero é sair”. Daí comecei a luta com o pessoal da VPR39, fizemos uma manifestação em frente ao comitê central do Partido Comunista Cubano, para pedir o direito de fazer a revolução no Brasil. E nada. Três anos e nada. Mas no meio da questão da Dissidência, que virou o MR-8, foi ficando forte, pegou o Lamarca40, saiu o sequestro do alemão41. O Franklin, que foi treinar com o Marighella, fez uma carta dizendo “Cuba é o paraíso”. Eu e Maria Augusta fizemos uma carta dizendo “Isso aqui é o inferno. Não venham”. Claro que foram. Uma promessa de paraíso supera dez ameaças de inferno. Chegou lá um grupo enorme, fizemos uma reunião e fiz uma resolução para destruir a ALN. Politicamente, naturalmente. Ganhei.
RR: Uma luta política entre os exilados em Cuba.
VP: Mas não levamos, naturalmente. Porque quem saiu e levou foi o Franklin, marighellista. Então ficamos isolados mesmo ali. E fui enquadrado, num quadro disciplinar, e fui fazer o treinamento rural. Ainda fiz seis meses, eu acho, de treinamento rural. E também foi divertidíssimo, né.
ID: Mas a organização ainda era a mesma?
VP: Era a mesma. Era a Dissidência, que virou MR-8.
RR: E tu na luta interna dentro do MR-8.
VP: Claro. Mas ganhei.
RR: Mas tutelada pelo aparato castrista. Bom, então te obrigaram a fazer os treinamentos?
VP: É. Você podia inventar de ficar doente ou você pode curtir. Vi exemplos de pessoal que estava cansado e dava o último esforço pra terminar. E é uma coisa bonita de você ver. Tem hora que você está na caminhada e não consegue mais andar. Quando não conseguia mais andar era uma lástima, uma tristeza. Mas fez bem pra saúde, claro. E é bom aprender arma. Arma, desarmar, atirar. É uma coisa positiva.
Alguns filmes da história cubana eram interessantes. Acabei o curso. Fui o último comandante. Fui o último a sair de Cuba também. Me deixaram em último lugar. Me largaram lá. Mas era bom, porque o pessoal daqui do Brasil também não queria que eu chegasse. Para você ver a evolução, quando eu cheguei no Chile o pessoal era marighellista. Chegamos eu, Daniel, Gabeira. O Gabeira se afastou, né. O Gabeira e a Vera Silva se afastaram. Eu cheguei depois de todo o pessoal do Brasil. E o pessoal do MR-8 tinha virado polopista. Saíram do Marighella para POLOP42. Tinham virado polopistas. A classe operária, os textos do Ernesto Martins43, não sei se vocês leram, que era um casa semitrotskista, um pouco luxemburguista. A POLOP fazia propaganda na minha época dos textos. Muito maçante, as caras viraram polopistas. Saíram lá quatro caras da direção e três da base, que era o que restava do MR-8. O negócio oscila, quando você fica longe do movimento de massas. E eu, com Daniel e outros, nós ficamos no nosso grupo. Eu era a minoria, inclusive, porque eu era mais à direita que eles. Fizemos e ficamos um tempo no nosso grupo no Chile. O MR-8 sobreviveu não por causa desse esquadrão, mas porque tinha contato operário em São Paulo. E quando voltaram pra São Paulo se nutriram e se reergueram. A maior parte do pessoal que estava lá saíram do MR-8. Uns caras ficaram aqui. Aquelas coisas que você não entende, que o pessoal da luta armada fazia. Mas nunca entendi como que o cara mudava para o vinho num átimo, cara que dizia que tudo era a luta armada passa a dizer que só a classe operária é revolucionária.
RR: A base teórica era fraca.
VP: Mas, mesmo assim, mudar de um canto pra outro. Acabou o nosso ciclo, né. O que sobrou da gente, sobrou o MR-8, outros grupos, mas foi o Lula que… Com exceção dos trotskistas, porque esses não acabam. São teimosos.
A gente fez uma frente aqui no Rio, quando o Lula foi tomar posse. Frente de esquerda. Mas o Babá também. E eles pediam para o Babá sair. E o Babá pedia para eles serem expulsos. Agora, o curioso é que eles se devoravam. E depois saíram juntos para o PSOL. Eu gosto do Babá, pessoalmente.
ID: E uma última pergunta…
VP: Deixa eu te dizer, tem um problema no Brasil que temos instituições pouco representativas. E um movimento de massas que deságua nas instituições. Esse é um problema. Porque não tem desdobramentos os movimentos. 2013, por exemplo. Por que a ocupação dos secundaristas de São Paulo não teve desdobramentos? Porque você teve uma vitória parcial e depois você tem os partidos vigentes que levam tudo para o parlamento. Se o parlamento fosse mais transparente, se houvesse mais representatividade, isso ajudaria o movimento de massas. Mas como o parlamento é uma bosta e não é representativo…
RR: Vai acomodando, vai distorcendo, e vai separando essas lideranças do movimento.
VP: Ai você acaba num vereador. Quando a institucionalidade é muito centralizada, não flui, é dura, insensível, você não pode penetrar essa institucionalidade. A não ser pelo método institucional, o voto, eleger alguém. O movimento tem essa dificuldade.
3) Questões atuais: Balanço do PT, Lava Jato e Junho de 2013
RR: Antes de fechar, queríamos uma síntese sobre três questões. Na volta para o Brasil, participas do processo de fundação do PT e participas de todo o ciclo do PT, que no caso do Rio de Janeiro vai, de uma certa forma, até 98. Na verdade, o PT no Rio vai até 98, como movimento progressista. Qual o teu balanço do PT? Segundo: o que tu pensas da Lava-Jato e seus desdobramentos? Por fim, gostaríamos que fizesses uma comparação entre Junho de 2013 e 1968. É possível comparar isso?
VP: Bom, de modo rápido. O PT foi o grande movimento da classe operária, junto com a Igreja, teve o papel do pastoral da terra, e junto com os remanescente da luta armada. Num primeiro momento um partido de reformas muito interessantes. Nunca foi revolucionário. O Lula nunca foi socialista. E os grupos que queriam usar o PT no inicio para construir sua organização revolucionária. Então nos anos 80 eles não davam muito valor ao PT, no sentido do PT. Porque o que valia era o grupo deles, que era um grupo estratégico. O PT era um negócio tático. E enquanto isso o setor do Lula foi, o Lula soube aproveitar esse lance das organizações e fazer a organização dele, o Grupo dos 11344. Ele montou a organização dos independentes. Como ele desconfiava muito da pequena-burguesia, ele formou o grupo dos independentes operários. Ele pegou a igreja e os sindicalistas pra fazer o grupo dele, inicialmente. Por exemplo, os independentes do Rio, que eram muito próximos a ele, ele não chamou. Porque ele era anti-intelectual e anti-estudante. Como tinha a figura carismática dele, ele ganhou uma organização para trabalhar para ele e, geralmente, era a maioria.
O Zé Dirceu depois foi assumindo uma liderança maior. Até aquele período, até 89, o PT virou os partido das greves, dos movimentos, chegou ao segundo turno, foi uma grande vitória. Bom, até aí não era muito claro. Um partido de reformas, de mudanças e tal. Depois de 89, o partido passa a ser o partido que quer eleger o Lula o presidente da república. É tragado pela institucionalidade. Usar a institucionalidade é natural, mas não se deve colocar isso como a questão central. Então, foi fazendo as concessões. E o objetivo virou esse. Ao mesmo tempo em que o PT se institucionalizava completamente, começou a ter vereador, deputado, senador. A um certo estágio começou a integrar gente mais pro interior, prefeito. Gente entrou pro PT porque era uma legenda. Aí ficou incontrolável. 75% dos delegados das conferências aqui do Rio de Janeiro eram quadros profissionais. Ou o cara era assessor de deputado ou era assessor sindical. Ou mesmo parlamentar, líder sindical. Então acabou. Já não era mais um partido representativo daquelas bases que o criaram. Era um partido de estruturas fechadas. E passou a ter um objetivo, que era a presidência da república. Controlou o movimento sindical para isso também. Em função disso perdeu a sua dinâmica.
Vou citar o Trotsky de novo. O camarada Trotsky tinha observado que, ao contrário do que sempre se dizia, o ascenso da classe operária se dá nas fases de prosperidade do capitalismo. Isso é uma grande coisa, não porque fosse uma invenção, mas porque todo mundo achava que o socialismo vinha com a crise. Então, o que que houve aqui nos anos 90? O movimento de massas caiu. Enquanto que a social democracia alemã cresceu, com o movimento de massas, e mesmo assim deu no que deu, aqui, a social-democracia brasileira, se é que a gente pode usar esse termo indevido, cresceu sem o movimento de massas. Quanto mais o movimento de massas caía, mais o PT tinha voto. Então isso deu uma grande autonomia ao corpo político. E ao mesmo tempo os sindicatos enfraqueciam, naquela luta. Esse descompasso eu verifiquei muitos anos. Eu falava com o Genoíno isso, nós fizemos um debate. E isso levou ao que, a um rápido empoderamento do PT também dos setores atrasados. O cara entrava, apoiava o Lula, apoiava o PT, fazia o que queria, o Lula não estava ligando pra isso também, porque o que estava querendo era apoio na eleição presidencial. E virou, depois você analisa o que se elegeram de prefeitos no interior de São Paulo, e depois alguns viraram deputado federal, a bancada caiu a um nível baixíssimo, porque esses caras não tinham nada na cabeça. E virou um partido cada vez mais institucional. Entra na institucionalidade, entra nos vícios da institucionalidade. Caixa dois, aquelas coisas todas que eram um processo normal. E, na medida que chega ao poder executivo, corrupção também. É de se esperar, a natureza humana.
Eu nunca imaginei que fosse desse nível que a Lava-Jato mostrou. E no final o Lula quando achou que ia ganhar, não ganhou. Quando foi ganhar, fez a Carta aos Brasileiros, onde entrega as reivindicações do partido. Depois faz doze anos de governo sem uma reforma. Quer dizer, o que era um partido reformista, nunca foi revolucionário, mas um partido reformista de massas, virou um partido de centro-esquerda, centro, como vocês quiserem, isso é muito relativo. E distanciado do movimento de massas, o que não quer dizer que não tenha apoio popular. E perdeu-se. Ficou o Lula, que é um grande quadro, por mais que personalize tudo, porque é aquela história, o Lula é um presidente como o Caetano é um músico, porque é o sucesso pessoal. Mas ele é bom mesmo, enquanto liderança. Seu governo teve méritos também, apesar de tudo.
Quanto à Lava Jato e Junho. Acho que a Lava-Jato é um negócio muito positivo e muito bom pra sociedade brasileira. Por quê? Porque desvendou o esquema de corrupção, que vem de décadas. E que eu, besta, não imaginava. Eu tenho um amigo chamado Carlos Vainer45, que quando discutimos uma vez, uma coisa qualquer sobre corrupção, ele disse “Vladimir, você vai ver quando chegar na Energia”. E eu imaginava as hidrelétricas, nunca liguei energia à Petrobrás. Mas um escândalo, desse tamanho colossal, mostra que a sociedade já está corroída pela corrupção. E corrupção a esse nível desorganiza a economia, altera as relações de mercado. E, em geral, em desfavor do pobre, porque tira a eficiência da economia. Na Petrobrás tem muito mais dinheiro perdido por administração ruim do que por corrupção. E esse é um grande passo. A gente já sabe com o que lida. Quando eu vi o Mensalão, achei que era qualquer coisa ali. A corrupção já começa no caixa dois. Eu acho que a lava-jato serviu pra melhorar relações políticas no Brasil. Agora, é claro que se depende do que fizer. Porque não adianta nada OLJ se não houver medidas de reforma política, reforma do controle das estatais. Nos anos 80, o PT era a favor da autonomia das estatais, eleição pelos trabalhadores das estatais. Essa era a posição do PT.
A OLJ em si é positiva, mas há uma perseguição ao Lula, sem dúvida nenhuma. Tem uma conotação política, que vem desde o mensalão. No mensalão, eu reclamei que a polícia foi direto em cima do Lula e do Zé Dirceu. Houve uma denúncia de corrupção na Executiva do PT. Eles pegaram o Genuíno por uma assinatura em um papel legal. Mas, do resto da Executiva, ninguém foi investigado. E o diretório do PT? Não foi investigado. A polícia não queria apurar o crime. A Justiça queria prender o Lula e o Zé Dirceu. A primeira coisa que esses caras deveriam fazer é quebrar o sigilo bancário da Executiva do PT. Mas não fizeram. Mas o PT precisa dizer que essa política que fez com as empreiteiras é uma política errada. Eu acredito que esse negócio não é armado. Mas os caras vão dando presente pro Lula, você vê a Odebrecht dizendo. Não significa que o Lula deu nada, mas os caras vão cobrar. Então ele tinha que cortar. Se condenaram o Lula por isso, com uma pena leve, um delito leve. Não deveria deixar de concorrer à eleição, mas é culpado. E o PT tem que ver isso, para não repetir os erros.
RR: E junho de 2013?
VP: Primeiro, um grande movimento. O PT reclamou, disse depois que era de direita. Besteira. Eu fui aqui, fiz até um filminho, ajudei a acompanhar. Fui até a Central do Brasil, porque sabia que os black blocks iam entrar na prefeitura. E o que a manifestação pedia, fora o transporte? O pessoal com cartaz sobre saúde, educação e denunciando o Marco Feliciano. Esse eram o tom da massa. Não me pareceu diferente em São Paulo. Se bem que me parece que lá teve um rechaço maior aos partidos. Mas foi um movimento muito bom. Em que se ataca a Dilma, é claro. Ora, se você reclama da educação e da saúde, você vai atacar diretamente o governo federal. Ataca o municipal, ataca o Estadual, mas ataca o Federal, é claro. Se fosse um governo que estava mudando, dava pra explicar para movimento de massas. Como a Dilma não estava mudando nada, ela pegou o ônus também. Mas é um movimento vivo, com muita gente jovem. Tinham um milhão de pessoas naquela manifestação aqui no Rio. Sem dúvida nenhuma foi a maior da história do Rio de Janeiro. Dez dias depois, dez mil pessoas. Burocrática, palavra de ordem, e os black-blocks na frente da manifestação. Meu filho tinha dezessete anos na época. Quando os black-blocks chegaram na Carioca eu peguei o meu filho, peguei o metrô e vim embora. Lançou um livro em 2013 e eu falei pra entrevistadora que aquilo ia se tornar coisa com cada vez menos gente, porque ninguém sai de casa pra assistir festival de briga. Dito e feito, aqui no Rio foi diminuindo, diminuindo e acabou. E eu falo politicamente. Não restam dúvidas de que há infiltrações nos black-blocks, mas não se pode condenar todos os black-blocks como infiltrados. E todo movimento de extrema-esquerda tem inflitração, extrema-direita também. Eu respeito os black-blocks, mas acho errado.
Desdobramentos. Como luta corporativa é uma vitória. Ganhou aqui, ganhou São Paulo, ganhou tudo. Mas se você tem um movimento de massas que aparece com outras reivindicações, você tem que dar um jeito de desdobrar as outras reivindicações. Aqui era diversidade, saúde e educação. Então os dirigentes deviam ter armado discussões em cima desses três pontos. E marcar parte dessa massa, porque sabemos que não volta todo mundo, em cima desses três pontos. Por exemplo, fazer por bairro. Por região de São Paulo. Para se elaborar uma plataforma de educação e saúde. E aí voltar pra rua em cima disso, após ter ganho o transporte. E mesmo tendo perdido o transporte poderia se voltar com isso. Agora, não é fácil. Porque, ao meu ver, a institucionalidade brasileira é muito fechada. Esse é um problema que está matando o movimento de massas.
ID: E as entidades, a UNE e a UBES, também não têm representatividade.
VP: Não tem, não. Mas se você tivesse flexibilidade, isso você poderia avançar. Pelos canais do movimento popular. Mas os partidos de esquerda ainda não têm canais. Eles tem seus agentes, que passam a mensagem. Mas ainda não são canais do movimento popular. E lá ficou aprisionado aquela vitória. E teve direita? Teve. Mas direita inexpressiva. Quando o Movimento Passe Livre encerrou as manifestações, numa quinta-feira, no sábado a direita foi pra rua. E pronto, não conseguiu mais nada. Aproveitou a onda, foi pra rua protestar contra a Dilma. Mas ela não tinha nada. Aqui no Rio chegaram a reunir duas mil pessoas, no Largo de São Francisco. E não teve nenhum desdobramento. Então, quando você vai no movimento, tinha um amplo sentimento de que era preciso fazer alguma coisa. Mas não tinha desdobramentos. Eu não quero dizer “se”, porque a história não tem “se”, mas tinha que tentar ter um desdobramento. E acho que a esquerda, esperando uma grande reforma política, tinha que ter uma nova compreensão do movimento de massas. Se não fizer isso, não adianta nada. Porque a instituição está impenetrável ao movimento de massas. Pontualmente, sim. Uma reivindicação, atende. Mesmo aqui nos professores teve reivindicação atendida. O Paes atendeu. E eu acho que isso está matando muito o movimento de massas. As instituições brasileiras são muito fechadas, no geral. É preciso dar um jeito nisso. Eu tenho me indagado com todo mundo na esquerda por que o movimento de massas morre. O movimento de ocupações das escolas secundaristas de São Paulo foi impressionante.
Notas
1 A Ação Popular (AP) foi uma organização cristã de esquerda fundada em 1962, com bastante influência no movimento estudantil brasileiro, a partir do crescimento da Juventude Universitária Católica (JUC). Opositora ferrenha do regime militar de 1964, por suas fileiras passaram nomes como Herbert de Souza (Betinho), José Serra, Vinícius Brant, Haroldo Lima, entre outros. Sua ala majoritária se dissolveria posteriormente no PCdoB, em 1971, após ser ganha pelas teses maoístas da Guerra Popular Prolongada.
2 Manifestação popular contra a ditadura militar em 26 de junho de 1968 que reuniu dezenas de milhares de pessoas na praça da Candelária, Rio de Janeiro, dois meses após o assassinato do estudante secundarista Edson Luís pelas forças da repressão.
3 Liderança estudantil de 1968 que posteriormente entraria para a luta armada juntamente com Cid Benjamin, Daniel Aarão dos Reis, Fernando Gabeira, Vera Silvia Magalhães, Maria Augusta Carneiro, Ricardo Villas Boas, entre outros.
4 Organização estudantil que romperia com PCB no final dos anos 60 e partiria para a luta armada. Idealizou e realizou o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, já sob o nome de MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro).
5 Em maio de 1976, os estudantes de SP criaram o DCE Livre da USP Alexandre Vannucchi Leme. E assim foi acontecendo em várias outras universidades brasileiras com surgimento tendências estudantis que se articulavam nacionalmente.
6 Ditadura Envergonhada (2002) é o primeiro volume da série de livros “Ilusões Armadas” escrita pelo jornalista Élio Gaspari sobre a ditadura, a partir dos documentos que lhe foram entregues pelo general Golbery do Couto e Silva. Este volume trata do período entre o golpe de 1964 até o AI-5 em 1968.
7 Elaborado em 13/12/1968 pelo ministro da Justiça, Luís da Gama e Silva, o AI-5 foi o mais severo dos Atos Institucionais da ditadura. Entre outras arbitrariedades, concedeu ao presidente da República o instrumento jurídico para fechar o Congresso Nacional, restringiu ainda mais o direito à dissidência e endureceu a censura.
8 Baixado em outubro de 1965, em resposta à vitória eleitoral da oposição em alguns estados, o AI-2 reforçou o poder do Executivo federal, desativou o pluripartidarismo, instituiu de vez a eleição indireta para presidente e possibilitou a demissão de funcionários públicos que se envolvessem com a oposição.
9 Editada em 09/11/1964 pelo ministro da Educação, Flavio Suplicy de Lacerda, a Lei Suplicy regulamentava o controle do Ministério da Educação contra as entidades estudantis, foco de muito insatisfação contra o regime.
10 Em 01/03/1966, Castello Branco anunciou que a gratuidade das escolas federais seria extinta para quem dispusesse de recursos para financiá-la.
11 Racha do PCB, o PC do B foi fundado em 1962 por uma ala que questionava o revisionismo soviético de N. Kruschev. No início, teve forte influência do maoísmo.
12 Inaugurado em 1951,o Calabouço era um refeitório estudantil que oferecia comida a baixo custo para estudantes de baixa renda. Sua segunda sede na Avenida Infante Dom Henrique teria sido uma prisão de escravos, daí o nome Calabouço. A UME, que por um tempo seria presidida por Vladimir Palmeira, era a responsável por gerir o espaço.
13 Militante desde os tempos da Convergência Socialista, Cyro Garcia é um dirigente do PSTU.
14 Estudante de Direito da PUC-SP, Luis Travassos (1945-1982) era dirigente estudantil da AP e foi presidente da UNE (1968-1969).
15 Estudante de Engenharia Química da Federal do Rio de Janeiro, Jean Marc von der Weid era outra liderança estudantil da AP. Elege-se presidente da UNE em 1969, após o Congresso de Ibiúna.
16 PCBR foi outra dissidência do PCB. Fundado em 1968, seus principais expoentes foram Mário Alves, Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho. Defendia a combinação da guerrilha rural com o trabalho das massas nas cidades.
17 Um dos primeiros cassados pelo AI-5, o deputado federal Márcio Moreira Alves (MDB) entrou para a história ao proferir o discurso no Congresso Nacional, sugerindo um boicote às comemorações do 7 de setembro em 1968, o que serviria de pretexto para o AI-5.
18 Francisco Negrão de Lima era o governador do Estado da Guanabara à época (1965-1971).
19 O estudante secundarista Edson Luis foi assassinado durante a repressão a um protesto contra as condições do Calabouço em 28/03/1964. Seu enterro no bairro do Botafogo contou com dezenas de milhares de manifestantes, na maior manifestação de massas desde abril de 1964.
20 Estudante de Física da USP, José Arantes era da Dissidência Comunista de São Paulo – DISP, grupo pelo qual alcançou a vice-presidência da UNE em 1967. Posteriormente, após treinamento em Cuba, ingressou na ALN. Seria morto pelo DOI-CODI/SP em 04/11/1971.
21 Brucutu era o nome dado ao veículo blindado que a ditadura utilizava para dispersar manifestações com jatos de água. Popularizou-se no Brasil inteiro, pois o termo remetia a uma canção de Roberto Carlos (“O Brucutu”).
22 Hoje no PSOL, o jornalista Cid Benjamin era militante do MR-8 e foi figura destacada no sequestro do embaixador estadunidense Charles Elbrick em 1969.
23 Ex-estudante de Sociologia no Rio de Janeiro Marcos Medeiros foi um inflamado líder estudantil do PCBR. Após exílio em Cuba, torna-se cineasta na Europa.
24 Hélio Pellegrino foi um psicanalista, escritor e poeta brasileiro.
25 Carlos Alberto Muniz era conhecido como Adriano do MR-8.
26 Estudante de Direito da PUC-SP, José Dirceu foi presidente da UEE-SP. Em 1967. Ainda no ensino secundário, filiou-se ao PCB, com o qual romperia, contribuindo para a formação das Dissidências.
27 Catarina Meloni foi direção da Ação Popular em São Paulo, sendo a candidata que perdeu para a chapa de José Dirceu.
28 Estudante da FEA-USP, Paulo de Tarso era um líder estudantil responsável pelo esquema de segurança dos estudantes reunidos para o Congresso de Ibiúna. Entraria para a ALN em 1969, participando do sequestro do embaixador Elbrick.
29 Eleito indiretamente em 1967, Abreu Sodré foi governador de São Paulo até 1971.
30 Harry Braverman (1920-1976) foi um escritor marxista norte-americano, membro do SWP.
31 Militante da ALN, Lauriberto José Reyes (1945-1972) rompeu com essa organização no exílio e formou com um grupo de dissidentes o Movimento de Libertação Popular, dizimado pela OBAN e pelo DOI-CODI.
32 Morto em novembro de 1969 pela ditadura, Carlos Marighella era a direção da Aliança Libertadora Nacional (ALN), uma dissidência do PCB que formaria a organização de guerrilha urbana mais bem estruturada no Brasil.
33 Fundada em 1985, a UDR (União Democrática Rural) é uma associação civil que representa os interesses dos grandes proprietários de terras.
34 Seção francesa do SU da IV Internacional, LCR-Liga Comunista Revolucionária (1974-2009) é precursora do NPA (Novo Partido Anticapitalista).
35 José Ibrahim (1947-2013) foi um líder sindical de Osasco que organizou as primeiras greves contra a ditadura em julho de 1968. Perseguido, ingressou na Vanguarda Popular Revolucionária, outra organização que pegava em armas.
36 Uma das desaparecidas políticas da ditadura militar, Maria Augusta Thomaz integrou a Molipo após seu exílio na ditadura. Desapareceu em novembro de 1973, numa fazenda no interior de Goiás.
37 Ligado ao brizolismo, o jornalista gaúcho Flávio Tavares envolveu-se com a luta armada entre 1967 e 1969, sendo um dos prisioneiros trocados pelo embaixador Elbrick.
38 Estudante de Psicologia e integrante da Dissidência Guanabara, Ricardo Villas Boas foi um dos prisioneiros políticos trocados por Elbrick. Ficou exilado na França, onde deu prosseguimento a sua exitosa carreira musical interrompida no Brasil.
39 Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), fundada em 1966.
40 Carlos Lamarca (1937-1971) foi um dos principais líderes da luta armada contra a ditadura. Integrava a VPR.
41 Em plena Copa do Mundo de 1970, a ALN e a VPR sequestram o embaixador da República Federal da Alemanha, Ehrenfried von Hollenben. O diplomata seria trocada quatro dias pela liberdade de 40 presos políticos, banidos e enviados para a Argélia.
42 A Organização Revolucionária Marxista Política Operária – POLOP foi uma organização de esquerda fundada em 1961, a partir de militantes egressos da Mocidade Trabalhista de MG, da Liga Socialista de SP, alguns luxemburguistas e trotskistas, além de dissidentes do PCB. Constituída essencialmente por intelectuais e estudantes de SP, MG e RJ, Em 1964, tentou organizar uma guerrilha contra o regime militar, mas viu seus planos frustrados ainda na fase de planejamento. Em 1967, ocorre uma divisão. Uma parte cria o Comando de Libertação Nacional (Colina) em MG, e outra parte criaria a Vanguarda Popular Revolucionária junto com o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) de militares filobrizolistas.
43 Ernesto Martins era o codinome de Eric Sachs (judeu-austŕiaco, dissidente do Partido Comunista Alemão ainda nos anos 1930).
44 Em 1983, 113 dirigentes petistas assinam um Manifesto que conformaria o Campo Majoritário que dirige o PT até hoje,
45 Carlos Vainer é Professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ.