Lugar do PSOL na luta antifascista
Qual é o papel do PSOL frente aos desafios atuais da realidade brasileira?Texto: Roberto Robaina Num mundo em que a extrema direita tem força para disputar o poder em muitos países, ganhando já em países fundamentais, faz sentido e é necessário, sempre que possível, os marxistas revolucionários realizarem unidade de ação com a burguesia liberal. […]
4 fev 2024, 16:37 Tempo de leitura: 10 minutos, 20 segundosQual é o papel do PSOL frente aos desafios atuais da realidade brasileira?
Texto: Roberto Robaina
Num mundo em que a extrema direita tem força para disputar o poder em muitos países, ganhando já em países fundamentais, faz sentido e é necessário, sempre que possível, os marxistas revolucionários realizarem unidade de ação com a burguesia liberal. Posições sectárias no interior do movimento socialista negam essa necessidade. Mas não é o sectarismo que domina a esquerda brasileira. O desvio oposto é o dominante, cuja essência não é apenas a defesa da unidade de ação, mas a estratégia de governo comum com a burguesia liberal. No caso brasileiro, nem de desvio se trata. É da natureza mesma da maioria da esquerda. Essa estratégia se apoia em dois fatos certos: primeiro, a crise política da burguesia deixa em muitos momentos históricos espaço para partidos vindos de baixo ganharem força; segundo, a burguesia não permite governos que não tenham forças partidárias que representem seus interesses diretos. Mesmo que pequenas. Assim, forças de esquerda buscando um caminho possível ao governo nos marcos da dominação burguesa aceitam as alianças com a burguesia e transformam essas alianças em estratégia. Não precisa ser dito que no governo assumem uma variante ou outra de políticas econômicas da classe dominante. Eis a orientação da social democracia e do reformismo.
O PT tem essa posição consolidada desde 1994, pelo menos. Tem teoria, programa e elaboração de dirigentes importantes fundamentando essa orientação. O PSOL sob a condução de Guilherme Boulos, sem elaboração teórica e estratégica alguma, com pragmatismo e empirismo, tem assumido em SP a mesma linha. Trata-se de uma novidade que vai incidir nos próximos anos sobre o futuro da esquerda.
O que chama atenção nesse processo é que vivemos um período de substitucionismo político. A burguesia liberal, sem forças próprias capazes de enfrentar a extrema direita, ganhar as eleições e governar, chama e aceita que o PT seja o carro-chefe do governo. O PT, sabendo que precisa manter um pé nas ruas para enfrentar a extrema direita, chama o PSOL para se associar e governar junto. No caso do PSOL, o efeito colateral, em termos históricos, é a redução do seu papel nas ruas, ou pelo menos da ala comandada por Boulos. A questão toda é qual o preço de deixar o espaço das ruas para ocupar o espaço dos palácios. Para realizar quais tarefas?
Leon Trotsky explicou que no desenvolvimento histórico, notadamente dos países da periferia capitalista, classes sociais muitas vezes seriam obrigadas a realizar tarefas econômicas e sociais que seriam de outras classes. Concretamente, os trabalhadores teriam de realizar tarefas que historicamente haviam sido implementadas pelas burguesias nos países centrais do desenvolvimento capitalista. Essa formulação, que fez parte de uma teoria mais completa que Trotsky chamou de lei do desenvolvimento desigual e combinado, foi amplamente confirmada ao longo do século XX. A reforma agrária e a independência nacional, por exemplo, foram tarefas realizadas, nos países centrais do capitalismo, pela burguesia. Assim foi, exemplarmente, nos EUA e na França. Pois na Rússia, para que a reforma agrária fosse conquistada, a burguesia precisou ser derrotada pela revolução proletária. Na China, a independência nacional e a reforma agrária tiveram a mesma dinâmica de classe. Em Cuba, idem. Há casos especiais, como a Coreia, onde uma revolução social sacudiu o país, e a burguesia estrangeira interveio e realizou uma reforma agrária na parte ocupada para desenvolver o país e evitar que a classe trabalhadora ganhasse mais força e conquistasse o poder em todo o território. Como regra, os países que realizaram essas tarefas lograram um importante salto no seu desenvolvimento.
No Brasil, o desenvolvimento histórico foi interrompido. Nem a reforma agrária, nem a independência nacional foram realizadas plenamente. A reforma agrária ficou muito distante. A independência nacional autêntica ainda não existe, embora o desenvolvimento industrial tenha dado um importante peso do país no mundo. A burguesia foi incapaz de reformas progressistas.Essas são discussões úteis para serem retomadas. Afinal, os partidos comunistas dirigidos pelo stalinismo insistiam na necessidade da aliança com a burguesia para realizar tais tarefas. O balanço histórico não foi favorável aos PCs.
Atualmente, vivemos uma ameaça de retrocesso histórico. Não apenas a burguesia não cumpre tarefas que deveriam ser suas, mas uma parcela da burguesia importante passou a sabotar e enfrentar tarefas que foram realizadas sob a direção da própria burguesia. É o caso do regime democrático burguês. Digo uma vez mais porque a burguesia já organizou inúmeros golpes para liquidar democracias liberais e porque, num país central como a Alemanha, a burguesia apoiou o regime nazista, a mais completa experiência de liquidação das liberdades democráticas num país capitalista. Mas é um fato que hoje há uma divisão na classe dominante. A questão é se a esquerda terá como estratégia governar com um desses setores e confiar na “vocação” democrática de uma ala burguesa. Se vai governar com eles e para eles.
Em muitos países do mundo, atualmente, quase como regra, há setores da classe burguesa que operam uma política de redução das liberdades democráticas e até de extinção dessas conquistas. Então, desenvolveu-se nesse período histórico claramente uma divisão na burguesia. Um setor buscando, planificando e trabalhando por um retrocesso histórico, e outro setor tentando manter as conquistas do período anterior e apostando ainda numa combinação de capitalismo e democracia liberal.
Com esse deslocamento de um setor burguês para uma política que se pode chamar de neofascista, há um processo de substituição das classes sociais, no sentido de que os trabalhadores estão tendo que defender conquistas de um período histórico ligado às lutas democráticas burguesas. As organizações da classe trabalhadora muitas vezes estão tendo como tarefa central a defesa das liberdades democráticas e, às vezes, até do próprio regime democrático burguês.
A grande questão que se coloca nesse processo de substituição é se a classe trabalhadora deve ou não ter uma aliança estratégica com a burguesia e governar com ela. Uma parte majoritária das direções das classes trabalhadoras já aceitou esse plano de aliança muito antes das ameaças neofascistas. Assumiu boa parte dos elementos programáticos econômicos e sociais da classe dominante e se colocou no lugar político dos partidos burgueses para gerenciar os interesses do capital a partir da máquina estatal. No Brasil, o PT é um caso exemplar. Fez isso desde 2003. Agora novamente. Por sua própria natureza de partido surgido da classe trabalhadora, enfrentou a Bolsonaro. E parte da burguesia teve de recorrer ao PT, reconhecendo sua incapacidade de ter força política partidária própria para enfrentar o bolsonarismo.
O recurso ao PT foi possível porque, ao longo da história, a direção de Lula já havia dado demonstrações de não romper com a lógica do grande capital. Ao contrário. O PT aceitou cumprir, pela primeira vez na história do país, um papel de estabilizador político de um regime político cuja natureza social é de uma classe oposta ao da base fundacional do partido. Esse foi o sentido da Carta ao Povo Brasileiro. No seu retorno ao poder, após o golpe parlamentar de 2016, bastou um Alckmin para ser a senha de que nada havia mudado por parte de Lula. Exceto uma questão muito importante. Lula já sabia que não poderia fazer um acordo sólido de defesa de um regime comum com toda a burguesia brasileira ou parte esmagadora dela. A divisão na burguesia foi muito forte. Por mais que tentasse, um setor importante seria oposição não apenas ao seu governo mas ao regime político que está defendendo. A baderna golpista de 8 de janeiro foi apenas uma prova televisionada. Contra isso, Lula não apenas aprofunda sua aliança com a burguesia liberal mas está de olho também na capacidade de mobilização mínima de rua e de renovação de quadros e manutenção de bases sociais e eleitorais na juventude. Esse é o olho que orientou seu combo Boulos/Marta. Boulos para cobrir um pouco melhor a falta de capacidade de mobilização e de manter a juventude que o PT já demonstra não ter. Marta para mostrar que Boulos está totalmente sob sua direção. E, logicamente, para indicar com evidências de que a burguesia liberal não tem com o que se preocupar.
Assim, parte importante do PSOL, sob a direção de Lula, aceitou ser parte da estratégia de aliança com a burguesia para governar. Dessa forma, tivemos um novo substitucionismo: em vez do PT, passou ao PSOL de Boulos o papel de manter a juventude enquadrada nas ideias do liberalismo burguês.
O grave problema disso tudo, como se não fosse pouco o abandono da independência de classes, é que sequer essa estratégia tem garantias de eficácia para enfrentar a extrema direita. A extrema direita ganha forças como regra em duas oportunidades: como resposta ao crescimento importante das forças revolucionárias e, nesse caso, a situação pode evoluir para um enfrentamento final entre revolução e contrarrevolução; ou diante das frustrações do povo com as políticas liberais e a captura dessas frustrações por forças burguesas que manipulam os descontentes para aplicar um programa contra seus próprios interesses. É o segundo caso que estamos vendo, o que tem colocado os revolucionários numa posição defensiva no sentido de ter como eixo a defesa das liberdades democráticas e, no limite, das próprias instituições democráticas burguesas atacadas pelo neofascismo.
Mas assumir o enfrentamento ao neofascismo desde uma posição no governo, em aliança com a burguesia liberal, ao inevitavelmente reproduzir a política liberal, significa se colocar como defensor de um estado burguês e abrir mão de ocupar um lugar de disputa para construir um pólo crítico ao regime político, por um lado, e ser antifascista por outro. Isso não quer dizer que o PSOL deva abrir mão de disputar espaços de poder. Mas em aliança com a burguesia é já um espaço ocupado pelo PT. Ao PSOL, cabe outro lugar. Se a aliança do PT com a burguesia liberal pode deter a ameaça da extrema direita e do neofascismo em alguns momentos, não se pode esquecer de que, enquanto existir capitalismo, existirá o fascismo como possibilidade. Não se pode esquecer tampouco que a burguesia não foi capaz de realizar tarefas progressistas que historicamente eram suas. E, por fim, não se pode esquecer que um amplo setor burguês já abandonou o liberalismo na política, renunciou à democracia e que os setores burgueses liberais, na hora decisiva, diante de ameaças aos seus interesses de classe, preferem os fascistas à classe trabalhadora.
O lugar do PSOL é na luta por um novo regime político. Para isso, não pode governar com a burguesia liberal. Pode e deve, sempre que possível, golpear as forças fascistas junto à burguesia liberal. Mas deve marchar separado. Então, o PSOL pode e deve fazer unidade ampla e deve apoiar o governo de turno sempre que é atacado pela extrema direita. Pode e deve inclusive apontar e apoiar toda medida progressista que melhore a vida do povo. Mas manter seu lugar independente é o único caminho para que se justifique historicamente e seja realmente útil em termos estratégicos para a classe trabalhadora brasileira. Para defender o regime e usar a força da classe trabalhadora num governo comum com a burguesia liberal, a história já produziu o PT. Ser apenas um puxadinho não é um bom lugar.